quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Matei o líder da seita

Esses dias, um internauta me perguntou: como destruir uma seita? Nada mais prático, certo? Afinal, se a seita é um elemento nocivo, destruí-la deve ser o objetivo mais importante de alguém que se preocupa com o assunto. Mas isso é uma meia-verdade e neste e próximos artigos explicarei a questão. 
Começarei com o problema do líder.

É característica das seitas terem uma centralidade muito forte do líder ou, no máximo, grupo pequeno de líderes. Este líder não tem apenas um conjunto de poderes específicos, limitados, como um chefe em uma empresa, um líder em determinada equipe, um treinador ou professor. O poder do líder transborda para toda a vida do liderado, interferindo em suas decisões pessoais, familiares, profissionais, educacionais, sociais etc. Além disso, o líder é visto como um ser mais elevado, superior, genial, incomparável, modelo a ser seguido. Sendo assim, eliminado o líder, acaba-se a seita, certo? A resposta é: não necessariamente. Provavelmente, não. Talvez apenas em seitas muito novas, pequenas, cujo funcionamento dependa muito do líder e este seja impedido de continuar sua atividade abusiva. 
No título que utilizei, "matar" é colocado de maneira metafórica. A ausência do líder normalmente acontece de outras formas. Um impedimento legal, uma campanha de denúncia massiva, uma briga interna ou mesmo doença ou morte natural. Não é raro que o grupo "rache" quando membros insatisfeitos têm força suficiente para gerar um forte abalo nas atividades do grupo. Entretanto, o líder abusador de um grupo pequeno também tem maior flexibilidade e, quando confrontado com ameaça inescapável, costuma ir embora, esconder-se e, quando possível, recomeça a atividade bem longe dali. 
Jaime Gomez (Buddhafield)
Um caso ilustrativo é documentado por Will Allen no filme Holy Hell. Após tensões no grupo, envolvendo inclusive alegações de abuso sexual, o líder muda-se da Califórnia para o Havaí. O grupo era pequeno e sua divulgação ocorria boca-a-boca. Jaime (Michel) Gomez era uma pessoa discreta que não revelava o nome real nem deixava vestígios do passado. O relacionamento com cada pessoa era muito próximo, como se fosse o pai daquela família, deixando os próprios seguidores em situação confusa para discernir os limites entre afeto e abuso. Ameaçado, não houve maior problema em sair de cena, levando consigo apenas os discípulos mais próximos - o que restava da "seita" - para começar em outro lugar.
No entanto, alguns grupos se desenvolvem de maneira a funcionar por conta própria. Isso não significa que se tornem independentes do líder. É como se o grupo já fosse uma máquina e o líder fosse o operador. Nestes casos, se o líder sair, abre-se espaço para que outro (ou um pequeno grupo) assuma a operação da máquina. O caso possivelmente mais documentado é o da Cientologia. Fundada por L. R. Hubbard na década de 1950. Investigado pelo Governo dos EUA na década de 70, Hubbard passou a se esconder, contando com a ajuda dos discípulos. A Cientologia já funcionava por conta própria, com filiais, cursos e atividades no país inteiro. Quando Hubbard faleceu, em 1986, um dos seus assessores de confiança - David Miscavige - conseguiu se articular para tomar o poder e subir como líder máximo da Cientologia. Para fazer isso, precisou golpear outros diretores do alto-escalão e confiança do falecido líder. Não é à toa que estes ex-diretores estão, atualmente, entre os principais denunciadores daquela igreja.
David Miscavige (Cientologia)
Ambos os casos - a pequena Buddhafield* e a grande Cientologia - ilustram como é difícil pensar em "destruir o líder para destruir a seita". No primeiro caso, o líder era a máquina. Sentindo-se ameaçado, se muda para longe, dilui e dispersa a seita na cidade de origem e começa tudo novamente nova localidade. No segundo caso, o grupo já era a máquina. Com a morte do líder, outro assumiu o controle. Os grupos não "continuaram iguais". Tanto Buddhafield quanto a Cientologia foram sacudidos quando algo aconteceu aos seus líderes. Entretanto, o que lhes causa mais problemas de fato não é uma eventual "morte/perda/exclusão" do líder mas, sim, a denúncia consistente de ex-membros com relação às suas atividades.

Continuarei falando sobre "como destruir uma seita" para tentar responder ao internauta. Acompanhe ou assine o blog para receber as atualizações no seu e-mail.

*Obs: não confundir com a comunidade alternativa inglesa também chamada de Buddhafield a qual não tem ligação com o grupo ligado ao dançarino Jaime Gomez.

Para saber mais, conheça meu livro Seitas e Grupos Manipuladores: Aprenda a Identificá-los. 

Um comentário:

  1. Estou lendo com bastante interesse suas informações. Já pertenci a uma seita e saí.

    ResponderExcluir