segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Casada com o líder de uma seita

A sexualidade é parte essencial da constituição do indivíduo. Portanto, exercer controle permanente sobre alguém costuma envolver o controle sobre sua vida sexual. Não é à toa que grupos controladores praticam, costumeiramente, algum tipo de interferência sobre a sexualidade dos seus participantes.

O caso a seguir é relatado por Carla Brown num evento deste ano da Associacão Internacional de Estudos Sectários (ICSA). Carla foi casada por 17 anos com membro de uma denominação cristã que, posteriormente, tornou-se líder de uma seita dissidente.
Carla era uma jovem estudante, produtora musical, amante da dança, bonita, com vida amorosa ativa e sem sentimentos de culpa. Em termos afetivos e sexuais, considera ter sido uma jovem mais aberta e experimentadora do que retraída, embora não se sentisse satisfeita. Tinha família católica mas dá a entender que não era praticante.
Aos 23 anos conheceu um homem bem mais velho, com visual "certinho", que a encantou. O homem dizia ter sido um playboy no passado, até conhecer a Bíblia. Relacionaram-se por 3 meses à distância até decidirem namorar. O estilo do homem atraiu aquela jovem, bem como seu conhecimento. Ele lhe enviava livros sobre o grupo religioso que participava, no meio-oeste canadense. Embora nenhum dos dois fosse virgem, Carla aceitou a vontade do namorado de só trocarem beijos e carícias após o casamento. A proposta a deixou animada por ter encontrado alguém realmente à procura de comprometimento.
A doutrina tinha noções bastante fortes sobre os papeis masculinos e femininos. Seu noivo havia rompido o namoro anterior pelo fato de a garota não se submeter às regras. Carla foi se adaptando gradualmente a novos padrões. Usava menos maquiagem e vestidos mais longos, escureceu seus longos cabelos loiros e adotou modos mais recatados. No grupo, mulheres eram mal-vistas caso discordassem ou debatessem com homens. Aprendeu que as mulheres manipulam os homens através da sedução e que isso não é bom aos olhos de Deus. Aprendeu que seus ex-namorados nunca a amaram de verdade mas apenas queriam seu corpo.
Em sua noite de núpcias, não reconheceu a si mesma. Ao entrar no banheiro e retirar o vestido para a primeira relação sexual com o marido, estava congelada, tímida e não queria que ele a visse nua. Relembrava um passado não muito distante no qual não sentia vergonha com outros rapazes. Foi uma sensação de ansiedade e medo. Engravidou naquela mesma noite e teve 7 filhos nos 11 anos seguintes. Durante a gravidez, aprendeu que seu marido não a desejava sexualmente, embora não deixasse de controlar seu corpo fazendo observações sobre o que ela devia ou não comer e sobre pequenas imperfeições em sua aparência.
Após a gravidez, o marido ficou furioso por ela ter começado a tomar anticoncepcionais, jogando-os fora e dizendo-lhe que é ele quem decide quando ter filhos ou não. Descobriu, nos meses seguintes, que as demais mulheres do grupo não conversavam sobre planejamento familiar. Descobriu também que, para a doutrina, a mulher deve deixar "nas mãos de Deus" a questão de engravidar.
Em desigualdade de forças entre, uma das possíveis reações da parte mais dependente é tornar-se ainda mais passiva e amorosa, na tentativa de encontrar alguma afeição vinda do outro, dominante.
Era isso que Carla tentava fazer mas, ao tocá-lo, ele virava e a rejeitava. A cada rejeição, sentia-se menos valorizada, menos amada, mais envergonhada, mais fraca, mais confusa, mais culpada. Já havia caído na espiral de dependência do grupo e do marido. Reagiu tornando-se ainda mais "santa" na aparência e nos modos, ao passo em que, na vida íntima, buscou tornar-se mais sedutora, para que fosse amada. O resultado foi ainda pior.

Naquela época, ambos já estavam fora da denominação religiosa e o marido havia fundado um grupo dissidente. Conforme Carla se tornava sexy dentro de casa, o marido acirrava o discurso controlador e repressivo contra as mulheres do grupo. Pregava abertamente que a mulher deve permanecer em silêncio até que o homem lhe dirigisse a palavra. Carla se sentia co-responsável pelo que estava acontecendo. Sua vergonha aumentou ao ponto de embotar qualquer desejo sexual evitando, inclusive, olhar para o próprio corpo no espelho. Odiava a si mesmo, julgando possuir algum defeito desconhecido que era a causa da rejeição do marido. Desnecessário dizer que não se sentia bem sendo mãe. Suas duas últimas gravidezes, de gêmeos, resultaram em aborto. Foi repreendida pelo marido por isso. "Para que você serve se não consegue dar filhos?", perguntava ele.
Após a saída, Carla continuou a se sentir mal com o próprio corpo, sem desejo sexual, por cerca de 4 anos. Ainda frequentava grupos religiosos e recebia propostas de casamento. Dois namorados eram líderes religiosos e tentavam fortemente seduzi-la, o que a deixava irritada pelo fato de se mostrarem de uma maneira em público e outra, na vida privada. Por algum tempo, participou de um grupo terapeutico que promovia "cura" para pessoas com orientação homoafetiva. Posteriormente, passou a frequentar grupos de orientação a vítimas de seitas, aprendeu a respeitar seus próprios limites e se envolver com quem a respeitasse.

Que lições podemos tirar desse relato?

Evitemos cair na tentação do "é óbvio!", afinal não conhecemos toda complexidade de Carla, sua história prévia e os 17 anos em que permaneceu na seita. Podemos especular sobre algumas tendências gerais que são muito comuns nos casos de ingresso e abandono desse tipo de grupo.
Carla era jovem e estava experimentando caminhos. O homem "certinho" pode ter lhe atraído por ser diferente do habitual. A habilidade oratória, comum entre líderes pregadores, passa a imagem de um home inteligente, qualidade valorizada pela mulher ao encontrar um pretendente. Uma posição de certa liderança ou destaque dentro de determinado grupo, também. E a chance de flertar à distância, sem a pressão do contato íntimo, talvez acrescentasse um senso de segurança àquela moça que era possivelmente bastante assediada pelos homens. Em fim, podemos imaginar uma série de motivos pelos quais Carla resolveu experimentar esse namoro.
Pelo relato, não é possível compreender em que momento os sinais de abuso começaram a surgir. Mas para entender os motivos de se entrar em uma relação abusiva é preciso compreender quais necessidades estavam sendo supridas. Pelo relato, o homem parecia dar uma segurança material. O fato de ser mais velho e experiente pode ter-lhe passado o senso de segurança emocional. O fato de estar envolvido em um grupo religioso também supriu Carla em suas necessidades de pertencimento e envolvimento social. Cabe lembrar, ainda, que participantes deste grupo normalmente estão em busca de significado, propósito para a vida, conexão com algo maior, além de serem pessoas bem-intencionadas e dispostas a doarem seu tempo livre por uma causa. Essa é uma impressão comum entre pessoas que começam a frequentar grupos religiosos. Tudo isso pode ter atendido, em Carla, suas necessidades de pertencimento e realização existencial.
Não é possível compreendermos as intenções do marido. Talvez ele também tivesse feridas que só viriam à tona quando o relacionamento se tornasse íntimo. Ou talvez ele fosse mais consciente de sua manipulação. Talvez ele fosse vítima de abuso e a doutrina da castidade tenha sido um bom pretexto para evitar a intimidade que lhe causava medo. Tudo isso são especulações. Podemos imaginar que a castidade pode ter aumentado a pressa de Carla pelo matrimônio. Além disso, não sabemos o quanto seus pais também ansiavam por ver a filha casada. O fato é que ela casou e engravidou.
Com um casamento selado, uma gravidez e, naturalmente, fortes vínculos sociais e afetivos com o grupo religioso, uma separação já se torna mais difícil. Tanto o marido quanto seu grupo social defendiam a submissão feminina. Pesquisas sobre conformidade mostram como pressões grupais são fortes o suficiente para levar a pessoa a pensar o impensável, para conseguir se adaptar ao grupo (ver um exemplo neste vídeo, em inglês). Com isso vem a disposição para aceitar o abuso (ou defender-se, opção que não parece ter sido a de Carla). A aceitação também era a maneira ensinada pela grupo ao qual pertenciam. A mulher deveria ser cada vez mais paciente e assumir a culpa pela ira do marido. A cada filho, uma esperança de algum conforto, ou de que fosse algo para estreitar o vínculo entre ambos. A cada filho, mais um dever, mais um dependente e uma dificuldade de se desvencilhar do círculo familiar e social abusivo.

Uma relação abusiva nunca faz sentido quando olhamos de fora e para o passado. Ela só faz sentido quando paramos de olhar os "contras" da relação e começamos a olhar os "prós". São os "prós" que predispõem a pessoa a menosprezar os sinais negativos. Um sentimento parecido com o do abuso de entorpecentes. A pessoa acredita ser forte o suficiente para não se prender ao mesmo, pois ainda não sabe a força daquelas amarras. Aceitar um casamento sem ter experiências sexuais com o noivo é um grande risco já que, como falamos acima, a sexualidade é parte importantíssima da nossa identidade. É como fazer uma compra ou assinar um contrato quase às cegas. Quem nunca comprou algo sem avaliar bem e depois se arrependeu? Bom, é nas grandes promessas que podem estar os grandes riscos. Nenhum manipulador se veste de criminoso. E é quando nos sentimos mais carentes que ficamos predispostos a cair em dinâmicas destrutivas.
Ao chegar no casamento, Carla já tinha assimilado algumas formas de ser do grupo e do noivo como, por exemplo, não discutir sobre o planejamento familiar. Engravidou, certamente, contra a própria vontade, influenciada por um grupo habituado a se omitir sobre o assunto. Grávida, tinha menos recursos para reagir. Qualquer passo dado precisaria levar o filho em consideração. Com a autoestima baixa, já devia pensar que não tinha mais condições de caminha pela própria conta. Até que encontrasse forças para reagir, 17 anos se passaram.

Fonte: BROWN, Carla. (2017) Recovery from Marriage to a Cult Leader and Induced Sexual Shame: A Personal Account. Em: Recovering Your Sexual Self After the Cult. ICSA.


Imagens: Shutterstock; Youtube; AliExpress, Pinterest, IBT.

Para saber mais sobre seitas e grupos disfuncionais, conheça meu livro Seitas e Grupos Manipuladores: Aprenda a Identificá-los. 

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