quinta-feira, 29 de junho de 2017

Dentro dos muros de uma ideologia libertária

Tradução livre do artigo original Inside the walls of a libertarian ideology, publicado na revista ICSA Today, vol. 7, n. 2, 2016, p. 6-9 e disponível em http://www.icsahome.com/articles/inside-the-walls-of-a-libertarian-ideology-doc


Era 1998 quando, aos 18 anos de idade, fui apresentado a assuntos espiritualistas, por um parente que me mostrou o livro Projeções da Consciência, uma coletânea de experiências fora do corpo (EFCs) de Waldo Vieira. Enquanto lia, caí no sono e - para minha surpresa - senti que me separava domeu próprio corpo [1].  Senti a experiência de maneira tão real como se estivesse acordado. Embora cético e anti-religioso, eu precisava reconhecer que havia tido uma experiência "de êxtase" ou "mística" e interessei-me em aprender mais sobre ela. Comecei a assistir às palestras gratuitas do Instituto Internacional de Projeciologia e Conscienciologia (IIPC), entidade do próprio Vieira.
Em essência, o convite básico da Conscienciologia é para que você estude as manifestações sobrenaturais com um espírito científico, sem verdades inquestionáeis, e baseado em suas próprias conclusões e experiências, como um meio de autoconhecer-se e desenvolver-se. Era uma mensagem sedutora para um adolescente ávido por autodescobertas.
Pelas semanas seguintes após minha EFC, tive algum sucesso em repetir a experiência em casa, usando procedimentos tão simples quanto concentrar-me na experiência antes de dormir. De vez em quando assistia a algum curso do IIPC, nos quais os professores enfatizavam que era necessário ter uma mente aberta mas manter o senso crítico. Minha participação nos cursos não era obrigatória para esse desenvolvimento, pois eu poderia tomar anos apenas para ler as volumosas publicações por conta própria e práticar as técnicas lá propostas. Mas eu poderia, mesmo? Foi assim que comecei a me envolver com o grupo.
O primeiro passo da Conscienciologia é introduzir ao visitante uma visão de mundo chamada de paradigma consciencial. É uma síntese das opiniões de Vieira, erroneamente apresentadas como um "consenso entre pesquisadores". É basicamente um modelo segundo o qual o ser humano é, na essência, uma consciência imaterial, envolvido por quatro corpos (físico, energético, emocional e mental). Esta consciência segue por uma série de reencarnações e interage em múltiplas dimensões. Conscienciologistas chamam isso de uma "verdade relativa de ponta" que deve ser verificada através da experiência pessoal. 
Se você é espiritualista, pode ficar estimulado com o discurso cientificista que eles utilizam para explicar suas experiências. Se não for, você pode, ainda assim, dar-lhes o benefício da dúvida. E assim que as pessoas acabam aceitando essa visão demundo. Minha crença de que eu saí do meu corpo, passei por paredes e flutuei por aí convenceu-me de que o IIPC estava certo. Eu não estava em um ambiente verdadeiramente científico, onde as afirmações precisam ser submetidas a processos de validação mais rigorosos. Então acabei seguindo a vida confortavelmente com meu novo senso de imortalidade e construindo meus estudos baseados no discurso conscienciológico. Logo em seguida, decidi me tornar um voluntário da organização.
Este processo é como a Conscienciologia me tornou "livre". Eu estava livre da necessidade de explorar outras disciplinas. Embora todos concordássemos que as pessoas devem estudar de tudo, nós tomávamos como natural o fato de que as aulas de Conscienciologia são estruturadas em torno dos seus próprios livros e visão de mundo, com pouco ou nenhum diálogo com campos independentes. Portanto, não me preocupei com as "ciências convencionais" e acabei acreditando que minhas habilidades intelectuais e comunicativas eram conhecimento científico avançado. Era suficiente para impressionar novos estudantes, abrir espaço na mídia e, portanto, retroalimentar minha autoimagem distorcida.
É por tudo isso que comparo a Conscienciologia com um castelo. Eu e muitos outros estávamos impressionados pelo seu charme, sem perceber que seus muros eram fortificados e altamente segregadores. No princípio, me beneficiei do poder do castelo e não me senti constrangido. Eu estava impressionado pelo que pareciam ser experiências paranormais. Junto com outros estudantes, me senti persuadido, confortado e esclarecido por aquela mistura de psicologia popular e senso comum espiritualista. 

Evolução da Conscienciologia
A Conscienciologia provavelmente seria inovensiva se fosse apenas uma escola de autodesenvolvimento. Embora as pretensões científicas da organização são ingênuas, os voluntários sinceramente acreditam em oferecer aos estudantes um meio de desenvolvimento pessoal. Mas a Conscienciologia não é apenas isso. Ela tem coisas para dizer sobre cada aspecto da sua vida! Algumas palavras sobre a história do grupo podem ajudar a clarificar como os seus pricípios, originalmente progressistas e democráticos, deram lugar a práticas conservadoras e sectárias. 
Vieira começou, em 1980, como líder de um pequeno grupo de entusiastas que gostariam de entender os fenômenos paranormais. Por direcionar-se a um campo de fronteira, sujeito a discriminações, Vieira e seus colegas desenvolveram uma relação de mútua proteção e admiração. Logo eles passaram a acreditar que estavam anunciando novos conhecimentos que resgatariam as pessoas da escuridão. Vieira, um especialista autodidata no campo das EFCs, passou a ser visto por seus colaboradores como um mestre espiritual, dando conselhos sobre tudo, desde saúde, lazer, educação, trabalho até casamento e vida sexual.
Em 1991, aquele grupo informal se transformou em uma organização sem fins de lucro. Com isso vieram as pressões normais de qualquer empreendimento econômico, mantido por voluntários, que agora precisavam ser motivados para cuidarem de novas funções de administração e vendas. A essência das publicações mostra como a organização mudou de um grupo de estudos independentes para uma escola de auto-ajuda - provavelmente uma atividade mais ampla e lucrativa [2]. A Conscienciologia, assim, tornou-se um sistema moral, que passou a enfatizar suas diferenças para atrair os estudantes. Naquele novo passo fortaleceu-se o separatismo.
Nos anos seguintes, o grupo se aprofundou no que hoje reconheço como uma dinâmica sectária. A configuração institucional mudou de escritórios espalhados em centros urbanos para uma comunidade em uma região rural interiorana. Uma organização parceira - o Centro de Altos Estudos da Conscienciologia (CEAEC) - adquiriu um lote de terras na cidade de Foz do Iguaçu, onde construíram-se salas de aula, laboratórios experimentais, uma biblioteca etc. Em 2002, Vieira mudou-se para lá, substituiu algumas das lideranças locais e transformou o local na nova sede política e cultural do grupo.
Em 2004, após me graduar em Economia, eu também me mudei para Foz do Iguaçu, assim como outras 800 pessoas nos anos seguintes. Estávamos construindo um experimento social, com voluntários desempenhando todo o trabalho. Até onde me consta, nem mesmo Vieira auferia lucros daquela organização - e digo isso na condição de ex-diretor financeiro do grupo. Nós tínhamos nossos próprios trabalhos. O que financiava a instituição eram seus cursos pagos e publicações. Mas o grupo também teve outras ideias, como por exemplo o mercado imobiliário. A instituição comprava lotes rurais nas proximidades, loteava e revendia, principalmente aos próprios voluntários que se mudavam para lá e planejavam construir suas casas. O mercado imobiliário brasileiro e local estava em alta. Por alguns anos, aquele era um empreendimento rentável, tanto para os vountários como para as instituições.
Acrescente a isso o fato de que Foz do Iguaçu era uma cidade nova para todos nós, acabamos tendo outros conscienciólogos como nosso único grupo social. Eram eles nossos vizinhos, amigos e colegas para atividades de lazer; familiares com quem dividíamos questões íntimas, paqueras, namoros, cônjuges; nossa rede de contatos profissionais e colegas de trabalho. Este cenário se construiu naturalmente. Nada precisou ser determinado ou imposto. 
Na condição de voluntários, começamos a preceber que a "ciência convencional" e a "sociedade convencional" não era para nós. Por exemplo, namoros. Ao invés de interagir com pessoas das mais diversas, tendíamos a namorar os próprios membros, pois não-membros normalmente se entendiariam com nossa rotina, noites, horários de almoço e fins de semana ocupados com atividades da organização. Eles não entendiam nossas conversas. Eles iriam querer atividades de lazer ao invés de "auto-análises conscienciais". Mesmo para voluntários de grandes cidades, as opções afetivas se reduziam a meia dúzia de pessoas. O mesmo acontecia com as amizades e opções de lazer. Mas como estávamos sob a influência de próprio grupo, não percebíamos que aquilo era uma barreira a nossa integração com a socieidade. Pelo contrário, nós nos sentíamos presenteados por ter essa opção de pessoas semelhantes, enquanto a sociedade só apresentava o caos. 
O resultado desta dinâmicaé que toda a vida do voluntário passa a ficar visível e sob os holofotes de outros voluntários. Os membros mudam sua vida inteira por uma causa, frequentemente ao custo de enfraquecer laços familiares, educacionais e profissionais. Todos pagaram um alto preço para começar uma nova vida em uma nova cidade, para estar entre pessoas que pensam como eles, mas também são estranhos. Retornar para seus lares de origem não seria fácil e, assim, todos permanecem comprometidos à convicção de que a causa vale o sacrifício. 
Consequentemente, esse processo faz com que os conscienciólogos dentro de uma comunidade se tornem muito zelosos. Eles querem a sua ajuda no voluntariado mas se preocupam muito com qualquer coisa que você diga que possa manchar a imagem institucional. Membros passam a fazer parte, involuntariamente, de uma rede de vigilância dos próprios colegas, não apenas dentro dos limites institucionais mas em todos os lugares. A vida de todos passa a estar sujeita às discussões, julgamentos e pressões, conforme os interesses da organização.
Como resultado, membros aceitam a ideia de que todos são representantes da conscienciologia 24 horas por dia. A instituição passa a discutir como os membros devem se comportar em seus ambientes profissionais, o que condomínios residenciais supostamente independentes deveriam decidir em suas assembleias [3], como os casais devem resolver seus conflitos, como negócios empresariais devem ser conduzidos, como professores e estudantes universitários devem se posicionar, quais atividades de lazer e locais tem boas ou más "energias" e todo tipo de assunto que diga respeito à vida de seus voluntários. Pessoas zelosas se tornam possessivas e invejosas. Pessoas preocupadas se tornam amedrontadas e raivosas. Apesar de toda retórica democrática, as pessoas passam a ficar paranoicas com a ideia de proteger a Conscienciologia a qualquer custo.  
Não é apenas a dependência grupla que criou um ambiente altamente controlado mas, também, a história pessoal de Waldo Vieira. Ele era um cirurgião plástico aposentado no Rui de Janeiro, com laços familiares e comerciais com a antiga Companhia Antarctica Paulista (posteriormente fundida com a Brahma para formar a AmBev). No início da vida adulta, Vieira foi o braço direito de Chico Xavier, o espiritualista brasileiro mais famoso de todos os tempos. Após aposentar-se, Vieira decidiu aproximar o espiritualismo brasileiro da ciência. Ele provavelmente não enxergava sua falta de treinamento cientifico como uma barreira, tentando compensar através de uma rotina de estudos disciplinada, acrescida de um discurso crítico e libertário contra o "conservadorismo científico". Sua personalidade carismática e estilo comunicativo logo atraiu seguidores da classe média. Sem ter criado muito diálogo com grupos especializados, tais como a American Society for Psychical Resarch, Vieira construiu suas conexões predominantemente com pessoas leigas no assunto, autodidatas, a maioria ou todos menos preparados do que ele, formando seu próprio grupo de autodidatas.
Três décadas depois, lá estava Vieira em um subúrbio rural do interior brasileiro. Ele havia imposto a si próprio uma disciplina monástica de leitura, escrita e palestras. Mais do que nunca, Vieira tinha seguidores aonde quer que fosse, e mesmo dentro de sua pequena casa, construída no coração daquele complexo institucional. Ele dificilmente deixava a organização, anão ser para ir ao centro da cidade visitar o filho ou ir ao shopping center - uma das poucas opções de lazer que Foz do Iguaçu tinha a oferecer a um senhor de idade. Sua esposa, em contrapartida, 40 anos mais jovem do que ele, tentava impulsionar sua carreira profissional como psicóloga e professora, viajando pelo Brasil a estudos ea trabalho. Eles se divorciariam em 2014, e Vieira faleceria no ano seguinte por uma complicação cirúrgica, apesar de sua relativa boa saúde e seu anúncio público de que teria ainda outros 7 livros para escrever, que estavam sendo supervisionados por 40 espíritos altamente evoluídos,
Em resumo, Vieira abriu mão de tudo o que um senhor de idade rico poderia querer, para devotar-se a uma causa. Ele protegia seu grupo em uma torre de marfim distante e, em retorno, recebia o tratamento de um mestre espiritual. Considerando o tamanho do comprometimento psicológico e o senso de superioridade que era inflado em seus seguidores, não era surpresa Vieira e seu grupo oferecessem oposição agressiva e absoluta contra qualquer coisa que considerassem ser uma oposição.

O processo de tornar-se uma seita

Uma vez que os membros passam a tratar quase tudo como uma ameça, começam as brigas constantes entre eles próprios. O grupo aprendeu com o estilo de Vieira. Quem tivesse poder para fazê-lo, sentia-se no dever de excluir os rivais, normalmente espalhando rumores ao grupo contra a pessoa envolvida. Muitos membros eram facilmente convencidos por boatos falsos espalhados pelos superiores. Outros temiam contrariá-los e ficavam em silêncio, coniventes. Vi muitas pessoas maravilhosas e que dedicaram sua vida à Conscienciologia serem rotuladas de traidoras, doentes, traiçoeiras, megalomaníacas, sociopatas, ditatoriais etc. Quando isso ocorre, a pessoa rotulada é deixada por sua própria conta, afastada de atividades institucionais, à deriva em uma cidade estranha e com poucos vínculos sociais. 
Os membros da organização aceitam posições de liderança em boa-fé. Mas na condição de diretores, eles precisam trabalhar mais duro e ficam com mais raiva dos voluntários "folgados", que nunca estão disponíveis quando são necessitados. Eles também percebem como os voluntários tem baixa autoestima, pouca experiência e alta admiração e dependência por eles. Nesse balaio de gato, qualquer pessoa boa pode se tornar autocrática.  
No meu caso, tudo o que eu queria, e muitos conscienciólogos querem, era escrever um livro. Quando Vieira e outros voluntários originaram meus manuscritos, fiquei autoconfiante. Mas quando colegas invejosos, com o apoio paradoxal e autoritário de Vieira, interromperam o processo editorial, fiquei desapontado. Quando levei a situação um passo além, publicando por minha própria conta, fui imediatamente expulso do grupo, com o rótulo de psicopata. Meu mundo de 14 anos de investimento e idealização ruíram. As mesmas pessoas que me elogiavam por minha dedicação agora me consideravam egoísta e mau.
Em uma demonstração de bondade aparente, eles me ofereceram seus serviços terapêuticos [a "Consciencioterapia"], que logo mostrou-se ser limitada a "autodiagnósticos" de como eu era responsável por tudo o que havia acontecido, e como eu deveria aceitar a situação que eu havia criado. A maneira de a instituição lavar suas mãos é racionalizando que eu havia provocado a situação e que a resposta deles era uma "oportunidade evolutiva" para a qual eu deveria ser grato. 
A dor é mais forte quando infligida sem intenções abertamente hostis. Você não sabe contra quem ou contra quê reagir, tornando-se confuso, um "morto vivo" por algum tempo. Algumas pessoas não suportam e retornam para o grupo pedindo, de uma forma ou de outra, perdão aos seus agressores. Me ofereceram essa oportunidade, a qual considerei um tanto humilhante para aceitá-la. 
Bancar meus princípios foi o motivo provável pelo qual deixar o grupo me trouxe mais alegrias do que dores. Sou grato por ter encontrado pessoas que passaram por processos parecidos e estenderam suas mãos a mim. Posteriormente, senti a necessidade de falar e encorajar outros a falarem, abrindo uma espécie de "observatório" sobre a Conscienciologia. Algumas cicatrizes podem permanecer para sempre, especialmente quando penso que fui ingênuo o bastante para dedicar meus melhores esforços a pessoas que não hesitaram em jogar meu trabalho na lata do lixo. Mas o esforço não foi totalmente em vão. Foi apenas direcionado a causa errada. Parafraseando uma ex-membra do Peoples Temple, Jeannie Mills [4], era uma causa que parecia muito boa para ser verdade, portanto, era muito boa para ser verdade!

Notas:
[1] Para um relato pessoal mais detalhado dessa experiência, ver o artigo “My First Out-of-Body Experience,” Journal of Exceptional Experiences and Psychology, Winter 2013, disponível em issuu.com/exceptionalpsychology/docs/jeep__2013__winter_/39
[2] Ver, por exemplo, O Self Perfeito e a Nova Era (Loyola, 2000) do antropólogo Anthony D’Andrea, PhD, ou meu relato sobre a evolução daquele grupo no e-book O que Penso da Conscienciologia (2015).
[3] Em um documento institucional, a instituição foi chamada por alguns moradores para resolver um conflito entre condôminos a respeito de se eles deveriam ou não construir uma rua interna. Ver UNICIN (2014, January). Parecer 01/2014. Foz do Iguaçu. Disponível em unicin.org/images/pareceres/parecer_condominios-01_2014.pdf
[4] Mills, J. (1979). Six Years with God: Life inside Reverend Jim Jones’s Peoples Temple. New York, NY: A & W.

Imagens: Consciência Lúcida

Para saber mais sobre seitas e grupos disfuncionais, conheça meu livro Seitas e Grupos Manipuladores: Aprenda a Identificá-los. 

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