quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Seitas e trabalho escravo

No primeiro artigo desta série, tratei do caso da Associação Palavra de Fé (Word of Faith Fellowship) e como suas duas filiais brasileiras foram denunciadas por maus tratos aos seus membros e recrutarem trabalho escravo para a sede, nos EUA. Explicarei, aqui, como o trabalho escravo opera em grupos sectários.

 

Religião

Uma das reações mais comuns do público é considerar o sectarismo uma questão religiosa. Os não-religiosos usam o acontecimento para reafirmarem suas crenças de que a religião está na raiz dos males à Humanidade. Os religiosos defendem-se dizendo que esse tipo de conduta é praticada por "falsas" religiões. O debate segue girando em círculos, enquanto a raiz do problema está em outro lugar.
Religião é uma palavra usada a gosto do freguês. Certas coisas são chamadas de religião, outras não. O critério para isso não está bem claro. Crenças, fé, pensamento mágico existem em visões de mundo  não vinculados à religião. Pregação, proselitismo, idem. Profetizações, gurus, adorações, idem. Caça às bruxas, perseguições, fanatismo, idem. Imaginação, ilusões, rituais, devoção, sacrifícios, tabus, idem. Caridade, amor ao próximo, fraternidade, idem…idem…idem…
Há quem diga que "religião é o que a pessoa chamar de religião". Concordo. Dificilmente encontro uma frase fundamentada começando com "religião é…", pois ao usarmos um termo cuja definição é vaga não é possível chegar a uma afirmação consistente. Por isso o convido, leitor, a seguir por outra linha de raciocínio, analisemos o trabalho escravo.

Escravidão

O trabalho escravo é proibido no Mundo. No Brasil, há pouco mais de um século. O que não significa que ele tenha deixado de ser tentador, economicamente, para certos patrões. Custos de mão-de-obra são um gargalo para todo empreendedor. Por que muitos não tentariam baixá-lo ao máximo, explorando seus trabalhadores, principalmente se não estiverem sendo fiscalizados? O Ministério do Trabalho tem libertado entre 1.500 e 2.000 escravos brasileiros todos os anos, na última década. A maior parte está em regiões rurais, onde as condições de vida e a capacidade de comunicação são precárias.
Como não é mais permitido sair caçando escravos à luz do dia, os escravagistas criam estratégias para atraí-los à armadilha, ou seja, a algum tipo de prisão que os force a aceitar condições impostas. A armadilha mais comum é a promessa de um bom emprego. Espalha-se notícia de que alguém precisa de trabalhadores em uma região distante.
Algumas pessoas estão em condição desesperadora, sem perspectiva, a ponto de aceitarem qualquer oferta. Na busca de um trabalho, embarcam em conduções para serem levados diretamente a um cativeiro, no meio da floresta, sofrendo ameaças em caso de fuga, em condições negociais determinadas pelos patrões.
Não é apenas trabalho o que buscam os patrões. A mesma armadilha serve para trazer escravas, que viram mercadoria em prostíbulos. Filmes como Anjos do Sol (2006) A Informante (2010), The Storm Makers (2015) ou campanhas como as realizadas pela empresa Made in a Free World ajudam a alertar para o trabalho escravo moderno. Ele está presente nas mais diversas cadeias produtivas dos bens que consumimos, do café e das roupas que vestimos aos componentes de nossos aparelhos eletrônicos.
A promessa de emprego não é a única forma de atrair pessoas para uma armadilha. Na hierarquia de necessidades de Maslow, o emprego estaria entre as mais básicas, pois trata-se da chance de conquistar sustento, alimento, moradia, segurança, propriedade. No entanto, armadilhas também podem ser montadas para pessoas que buscam satisfazer necessidades psicológicas. Os relacionamentos abusivos começam assim. Um ou ambos buscavam suprir necessidades de afeto, autoestima, intimidade sexual mas, por algum desnível de forças, um dos parceiros se tornou altamente dependente enquanto o outro usou o poder que tinha para tirar vantagens de maneira destrutiva.

E as seitas?

Assim como ninguém tem escrito na testa "traficante de escravos", "estelionatário" ou "marido abusivo", os grupos não vêm com um manual explicativo ou alertas sobre a manipulação que podem esconder. As pessoas ingressam em grupos buscando realizar necessidades, quer de caráter mais social, afetivo, comunitário, quer de caráter mais pessoal, ideológico, espiritual. E encontrarão grupos que parecem como outros. O fenômeno da manipulação se esconde e, muitas vezes, até dos próprios manipuladores. É um fenômeno que acabamos descobrindo depois que acontece, cabendo então alertar e fazer parar.
Indícios podem existir mas não são tão óbvios assim. Talvez você ou algum conhecido já tenha passado por um relacionamento destrutivo e depois pensado "eu deveria ter prestado atenção a alguns sinais que apareceram lá no começo". Pois é, são sinais sutis mas você está determinado a investir na relação, pois ela parece promissora. Os benefícios parecem compensar os malefícios. Com o passar do tempo, os episódios ruins se multiplicam mas você está amarrado na relação e o preço da ruptura é alto, então você persiste. A relação com grupos destrutivos segue um caminho semelhante.
Nos primeiros contatos, o grupo mostrará seu lado melhor. Pode ser através de um conhecido ou amigo seu, que puxa o assunto para conhecer seu interesse em temas dos quais a doutrina fala. Ele não está ali pensando em "recrutar alguém". Ele acredita, sinceramente, que a doutrina tem coisas boas e quer lhe ensinar. Ele gosta da sua companhia e gostaria de tê-lo nos eventos de sua seita. Se a intenção for boa você sentirá, o que torna o convite eficiente. Você irá rejeitar se estiver ocupado ou se não se interessar muito no assunto. Mas pode lhe interessar, ou sua boa vontade de conhecer o grupo de seu amigo pode levá-lo a frequentar as primeiras atividades.
Os grupos são experientes para saberem o que pode ou não ser feito nos eventos para recém-chegados. Atividades polêmicas não funcionam. Atividades leves de confraternização funcionam. A sua primeira impressão no contato com uma seita pode ser de pessoas amigáveis, sinceras, muito interessadas em você. Elas têm, naturalmente, interesse em pessoas novas e em lhe tratar bem, pois seu círculo de contato é restrito e seria bom aumentá-lo. Na verdade, as chances são grandes de você ser mais bem tratado nos primeiros contatos com uma seita do que nos primeiros contatos com um grupo não sectário.
O recrutamento pode funcionar muito bem com jovens, mais ávidos para se socializarem e também menos experientes. A chance de conhecer pessoas novas do sexo oposto é um atrativo. Os jovens podem ter menos bagagem cultural para duvidar do que a doutrina informa, ou mais flexibilidade para aprender as doutrinas em relação aos adultos com ideias formadas, e mais tempo livre para estudar. Isso faz com que os jovens possam rapidamente de destacarem por aprenderem rápido as ideias da seita. Se isso acontecer, serão elogiados e admirados pelos adultos, incentivados a continuarem. O jovem que se sentia meio "perdido no mundo" logo pode sentir que é alguém importante e que encontrou o seu lugar.
Conforme se vai criando um discurso crítico do "mundo lá fora" e aumentando os vínculos com o grupo, se criam as raízes para desestimular a saída do participante. Cada seita terá sua história e intensidade de exploração. No caso da Comunidade Rhema e do Ministério Verbo Vivo, que funcionavam como filiais da Word of Faith Fellowship, uma das formas de escravizar seus membros era levando-os para os EUA, atraíndo-os a uma armadilha com promessas de oportunidade, estudo, ascensão. Ao chegar lá, sozinho, é muito simples pegar o passaporte de um jovem inexperiente, restringi-lo de contatos, mantido em cativeiro dentro de algum terreno, e obrigando-o a trabalhar.

Uma hora a verdade vem à tona, pelo menos para algumas pessoas. Segundo a investigação da Associated Press, no Brasil, essas duas igrejas foram perdendo a metade dos fieis, depois que as denúncias começaram. Isso certamente significa dificuldades para elas mas não seu fim. Elas buscarão se adaptar a um contexto de menos fieis, menos "mão-de-obra". Como mostrei no artigo anterior, a Verbo Vivo parece ter contatos no Fórum de Justiça e até um vereador no município. É possível que a Rhema também tenha tais ligações. Em fim, elas vão encontrando formas de sobreviverem, em uma história que apenas começou.
Portanto, não nos iludamos com a forma das coisas. Acreditar que uma coisa é boa ou ruim por levar o nome de religião é julgar um livro pela capa. Religião é uma das formas possíveis que os grupos manipuladores podem tomar. De mil outras formas. Desde escolas, grupos de estudos, grupos políticos, empresas, grupos terapeuticos, grupos de desenvolvimento artístico ou esportivo etc etc etc. Mesmo uma família pode desenvolver a dinâmica sectária. Não depende do conteúdo "doutrinário" ou "religioso" mas da capacidade de se manter relação na qual a parte explorada depende da parte exploradora, chegando até a defendê-la e seguir suas determinações.

Imagens: About Islam; Food Manufacture; PDH; Comme Chez Cat; Papás a Bordo.

Para saber mais sobre seitas e grupos disfucionais, conheça meu livro Seitas e Grupos Manipuladores: Aprenda a Identificá-los. 

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