sábado, 10 de dezembro de 2016

Azul é a cor mais quente


Normalmente imaginamos o relacionamento tóxico como aquele formado por um agressor e um agredido (agressão que pode tomar diversas formas, como manipulação, extorsão, vampirização, violência física e/ou psicológica etc). No saldo, uma das partes é constantemente desrespeitada e sai machucada. Por isso também são chamados de relacionamentos destrutivos.
Essa representação é adequada para boa parte dos casos. Entretanto, hoje quero tratar de um tipo de relação na qual os conceitos de “agressor” e “agredido” não são os melhores. Um tipo de relação na qual os desníveis podem ir se aprofundando sem mesmo que os parceiros tenham consciência. Tais desníveis começam pequenos ganham relevância, gradativamente, gerando uma disparidade entre um lado razoavelmente autônomo e outro, consideravelmente dependente. Essa disparidade não parece tóxica em um primeiro momento mas tem potencial destrutivo alto, principalmente para a parte mais dependente. Para ilustrar, gostaria de utilizar o filme “Azul e a cor mais quente”.


1. O filme

Título em Português: Azul é a cor mais quente.
Título original: La Vie d’Adèle – Chapitres 1 & 2.
Gênero: drama.
Ano: 2013
País: França
Duração: 179 min.
Direção: Abdellatif Kechiche.
Companhia: Wild Bunch.
Outras informações: Baseado na história em quadrinhos Le bleu est une couleur chaudede Julie Maroh. Vencedor da Palma de Ouro e do prêmio da Federação Internacional de Críticos de Cinema.
Sinopse: Adele (Exarchopoulous) é uma estudante secundarista que começa a descobrir a atração por outras mulheres. Conhece Emma (Seydoux), por quem desperta uma forte paixão. Com o tempo, passam a viver juntas. As tensões acontecem conforme elas começam a descobrir suas diferenças.

Atenção! Partes da estória são reveladas a partir daqui. Você pode ler para assistir o filme com outros olhos e captar detalhes da obra. Ou você pode preferir assistir ao filme antes de continuar a leitura, para não perder a “surpresa”. A escolha é sua ♥
Adele é uma estudante secundarista normal, próxima de completar 18 anos. Já tendo breves namoros com meninos, começa a descobrir uma atração pelo sexo feminino. Nesse contexto, conhece Emma. Ambas se apaixonam fortemente e passam a viver juntas.
Uma consequência marcante que ocorre com Adele a partir do namoro com Emma é a ostracização social. Em primeiro lugar, Adele passa a ser discriminada e afastada pelos colegas de classe. Adele também oculta a relação dos pais, apresentando Emma como se fosse uma amiga. A partir do ano seguinte, já empregada como professora do Ensino Infantil e vivendo junto com Emma, os pais não mais aparecem no filme, deixando a entender que houve um importante afastamento entre estes e a filha. Além do afastamento de amigos e do núcleo familiar, Adele também evita os convites sociais dos professores com quem trabalha, ocultando o fato de viver com outra garota mas, consequentemente, não formando laços de amizade mais forte com seus colegas de trabalho.
Este ostracismo social não é fruto de um “parceiro narcisista” que desencoraja sua vítima de ter amigos ou vida social. É, muito mais, um resultado de uma “cultura preconceituosa”, homofóbica, da qual Adele acaba se afastando ou evitando (coloco os termos entre aspas pois é preciso cautela para que não fiquemos simplesmente aplicando rótulos que nos limitam de investigar os detalhes das coisas). Adele, de fato, faz o que 99% dos conselhos amorosos orientam, bancando com firmeza seu amor, não se deixando oprimir pelos preconceitos sociais.
Falemos um pouco sobre Emma. Ela é uma estudante de Belas Artes, filha de classe média alta, com pais afetuosos que lhe dão apoio em suas opções profissionais e amorosas. Emma já namorou outras mulheres antes e tem vários amigos, tanto no meio artístico quanto LGBT. É ambiciosa, procurando entrar em exposições e consolidar-se como pintora.
Emma é mais velha e experiente que Adele, e acaba tomando um papel mais “dominante” no casal, não no sentido autoritário, mas de ser uma figura mais central. Em outras palavras, a vida de Adele parece girar mais em torno de Emma do que a vida de Emma gira em torno de Adele. Emma está conectada a vários núcleos: tem uma boa relação com os pais, tem seus amigos do meio artístico, tem Adele. Esta, por sua vez, acaba se desconectando dos pais e dos amigos da escola. Além disso, não chega a formar vínculos mais fortes com seus colegas profissionais ou com os amigos de Emma (com os quais não interage muito devido aos interesses culturais diferentes). Adele se torna, portanto, bem mais dependente de Emma do que o contrário.
Foi Emma quem tomou a iniciativa da aproximação, ao perceber o olhar curioso daquela jovem e bonita adolescente. Foi ela sua primeira paixão, ao menos homoafetiva, e certamente se encantou com toda pulsão de energia que Adele lhe dedicava. Emma fez de Adele sua musa, inspiradora de sua arte. Enquanto isso, Adele procurou se ajustar a um papel no qual alternava-se entre seu trabalho como professora e os serviços domésticos. Emma demonstra pouco caso na opção profissional da companheira, que lhe parece algo pouco ambicioso. Emma é da opinião que Adele deveria explorar mais seu talento de escritora. Com o tempo, Emma sente cada vez menos interesse em Adele, e começa a se interessar por Lise (Mona Walravens), uma antiga amiga, agora grávida, que logo começa a ser sua nova “musa inspiradora”. Nesse distanciamento, sentindo-se sozinha, Adele acaba tendo um caso com um colega de trabalho, às escondidas.
Pessoas mudam. Afinal de contas, a palavra de ordem que mais escutamos nas redes sociais não é “mudança”? Não há garantias de que um relacionamento dure para sempre. Mas a separação não é, em si, o problema. Ela se torna trágica, no filme, no que se refere às consequências acarretadas para Adele. Ao descobrir a traição, Emma tem um ataque de agressividade e a expulsa de casa1 (falarei adiante um pouco mais sobre a personalidade de Emma).
A partir de então, Adele é mostrada sozinha e desolada. Seu trabalho parece sem sentido e vazio. Três anos depois, faz contato com Emma. Adele ainda a ama e deseja retomar o relacionamento, mesmo sabendo que Emma vive agora com Lise. Ao longo dos anos, Adele só teve pequenos flertes que não chegaram a durar. Emma, por sua vez, embora sinta falta da sexualidade ardente de Adele, está em uma vida estabilizada com a família que formou com Lise e seu filho pequeno. Adele ainda chora na despedida de ambas. Sua feridas parecem longe de estarem curadas.

2. Discussão

Depois que “o estrago está feito”, é tentador bancarmos os conselheiros dizendo “eu sei onde você errou”. Mas o fato é que, ao assistir o filme (sem conhecer o desfecho), quem2 não apoiaria Adele e Emma em seus esforços para ficarem juntas? Quem não considerou inspirador ver Adele vivendo com sua amada após sofrer a discriminação dos colegas de escola? Quem não diria “vá em frente” ao ver esta garota de classe média baixa construindo uma relação afetiva e sexual apaixonante com outra, mais experiente, oriunda de meios intelectualizados e com mais recursos? Quem não concordaria que suas escolhas eram na direção da libertação e emancipação pessoal? Não há bola de cristal para prever certos desfechos.
Dito isso, é importante se ter ciência de fatores que podem representar risco na formação de um novo relacionamento. No caso do filme, o afastamento de Adele de seus antigos vínculos e a fraca ligação com novos grupos acaba deixando-a dependente de Emma como praticamente a única figura que lhe pode trazer alguma segurança. Afora o emprego, que lhe dá algum suporte econômico, parece que Emma é o suporte de Adele em outras dimensões da vida, afetivas e sociais.
Poder formar um relacionamento homoafetivo apesar da discriminação, ter uma parceira mais experiente e com certa estabilidade econômica e social, ter um círculo de amigos do casal, entrar em uma classe mais culta e mais rica, todos parecem sinais de uma melhoria de condição social. Entretanto, uma vez que estas conquistas estavam condicionadas a Emma, elas se perderam com a separação, colocando Adele em situação até mais complicada do que no início do relacioanamento pois, agora, seus laços sociais e familiares prévios estavam desgastados.
Certamente as minorias – mais discriminadas e com menos suporte – tendem a ser mais vulneráveis, nestas condições. No casal do filme, o preconceito à homossexualidade atingiu mais fortemente Adele do que Emma. Mas condições de risco e ostracização social também estão presentes em outros contextos não ligados à questão LGBT. O problema da dependência pode acontecer em qualquer tipo de relacionamento, conforme um parceiro comece a girar toda a sua vida em torno do outro. Ostracismo social também poderia ocorrer em casais nos quais um ou ambos os membros fizesse parte de grupos altamente exclusivistas (famílias possessivas, religiões de pertencimento, empresas controladoras…), ou mesmo uma viagem ao exterior que deixe um dos parceiros altamente isolado.
O casal do filme não pode ser rotulado como “narcisista” e “codependente”, termos que gostamos de usar livremente mas que deveriam ser reservados a quadros psicopatológicos mais graves, como o TPN3 e o TPD4. Mesmo se levarmos em conta que Emma se excedeu ao brigar com Adele e expulsá-la de casa, ela não pode ser classificada como “o agressor” da relação no restante do filme. Seu comportamento não é destrutivo, manipulador ou parasitário sobre a parceira. Certamente, se Emma fosse mais empática e menos autocentrada, um tipo de relacionamento mais harmônico poderia ter sido construído, ou uma separação mais amistosa – mas é impossível dizer ao certo.
Ocorre, entretanto, que Adele, inexperiente, não está ciente da dependência excessiva na qual estava entrando, que a colocava em alto risco, caso a relação terminasse. Emma, por sua vez, encantou-se pela garota mas não esteve, ela própria, disposta a dar igual mergulho, pois Adele pouco tinha a ver com seu mundo e suas ambições. Não podemos dizer que foi um erro iniciarem o relacionamento, nem terminarem. Não há como prever desfechos, e a racionalização fria pode até quebrar o encanto que acende a paixão inicial entre os amores. O problema não é o início ou término da relação, em si, mas as consequências construtivas ou destrutivas que a união e a separação podem representar na vida de cada um.

Notas

  1. Ao menos na Lei brasileira, um dos cônjuges não pode expulsar o outro de casa, já que em regime de união estável, ambos têm igual direito ao acesso dos bens. Tendemos a acreditar que um relacionamento extraconjugal justifica qualquer medida retaliatória de um parceiro contra outro, o que configura exercício arbitrário do próprio juízo. O parceiro que se sente traído pode pedir o divórcio e, eventualmente, ressarcimentos por danos morais. Entretanto, jamais pode fazer justiça com as próprias mãos para vingar-se do outro.
  2. À exceção de quem seja contrário a uniões homoafetivas, naturalmente.
  3. Transtorno de Personalidade Narcisista
  4. Transtorno de Personalidade Dependente

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