quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

O que as seitas têm de bom?

Nossa mente costuma formar ideias simples sobre coisas que não são simples. No caso dos grupos disfuncionais, tendemos a elaborar noções maniqueístas. Acreditamos que seus membros só podem estar inconscientes para pertencerem a um grupo assim. O que poucas pessoas refletem é que há uma racionalidade em quem ingressa num grupo disfuncional - e não se trata de uma falsa racionalidade. 
Há ganhos em ingressar nesses grupos - não apenas falsos ganhos. Para compreendermos o que leva alguém a entrar para uma seita, precisamos nos despir dos nossos conceitos e nos esforçarmos para nos colocarmos no lugar do outro e compreendermos sua realidade. Temos que evitar a postura etnocêntrica do tratar a consciência do outro como uma falsa consciência.
É comum que as pessoas vivam ou experimentem condições disfuncionais. Para alguns, essa disfuncionalidade pode ser o medo da hora em que o pai chega em casa bêbado, ou precisar ir diariamente à procura de comida e abrigo. Para outros, viver no centro poluído de uma metrópole ou o término de um relacionamento amoroso. Mesmo quem nasce em berço de ouro ou ambiente relativamente harmônico está sujeito a periodos mais difíceis nos quais se sinta sem rumo nem esperança. Quer de alta ou baixa intensidade, quer permanentes ou eventuais, todos nós passamos por períodos praticamente insuportáveis ou que demandem alguma mudança radical. Aderir a um grupo sectário é uma tentativa de sair de uma condição disfuncional, sem saber que se está entrando em outra.
A priori as seitas não devem ser consideradas uma boa opção. Eu nem mesmo as considero uma opção "menos pior" mas uma opção evitável mesmo, em qualquer contexto. Há, portanto, uma parcela de falsa consciência ao ingressar em um grupo disfuncional. Eles parecem benévolos de início mas se revelam destrutivos com o passar do tempo. Mas há também uma parcela de consciência verdadeira ao entrar na seita. Há uma consciência de que continuar como se está não é uma opção. A entrada na seita é uma reação de alguém que anseia por mudar de vida.

Sendo assim, o que elas têm de bom?


Entenda o "bom" com muitas aspas! Melhor dizer que é algo bom no curto prazo, com preço alto e cobrança de juros, uma perda com ganhos secundários. Sair da frigideira para cair no fogo. Mas que nos mostra onde estamos errando como sociedade!
As seitas atraem com a imagem de agregação social. Fictícia, artificial - é verdade - mas quem não a encontrou em outros lugares não hesitará em arriscar. Os tempos atuais mostram bem a face do sistema capitalista no qual vivemos. A concentração de renda só aumenta, significando que os que têm o poder se utilizam do mesmo para concentrar mais poder (ver, por exemplo, os dados da ONG Global Inequality). Ou seja, a sociedade como um todo é baseada na competição e exploração, para não dizer parasitismo. Até mesmo os resultados eleitoriais, que dão certa ilusão de democracia, têm sido burlados, em todos os países, por elites que não têm o mínimo escrúpulo em retirar as pequenas migalhas que ainda concediam aos excluidos. Isso traz consequências em níveis comunitários e individuais, como a desagregação familiar, a falta de perspectiva, propósito e significado para a vida, o caos e a barbárie, e os danos psicológicos decorrentes.
Pessoas vivendo na solidão, ao entrarem numa seita, sentem que finalmente encontraram amigos. Quem labuta de sol a sol empregado em trabalhos sem sentido, nos quais percebe ser apenas uma peça descartável de uma grande máquina, visto como um número pelos patrões, ao entrar na seita, finalmente é tratado como alguém especial, alguém "escolhido" para transmitir uma mensagem de paz. Quem se desiludiu com grandes narrativas das religiões tradicionais, das ideologias políticas ou das promessas da ciência, encontra nas seitas um discurso novo que lhe renova as esperanças em um futuro melhor e lhe indica o que fazer. Quem não encontrou estabilidade material ou psíquica para lidar com um mundo múltiplo e caótico, encontra nas seitas um campo estável, onde há coesão de ideias, propósitos e comportamentos.
Embora o texto possa ser interpretado como uma apologia às seitas, não o é. Minha esperança é transmitir a ideia de que, apesar de toda denúncia que precisamos fazer contra grupos disfuncionais, precisamos ter a noção de que elas são, em boa parte, um sintoma e não uma causa, dos danos psíquicos e sociais aos quais estamos sujeitos. Um trabalho no sentido de ajudar o indivíduo a construir suas forças, pessoal e coletivamente, é indispensável para sair das condições de vulnerabilidade que o tornam alvo fácil de aproveitadores.

Para saber mais, leia meu livro Seitas e Grupos Manipuladores: Aprenda a Identificá-los.

Imagens: The Truth; Ancient Faith.

2 comentários: