sábado, 6 de janeiro de 2018

O sectarismo como vício

De maneira didática, o envolvimento sectário pode ser comparado ao problema da dependência de drogas. Nas drogas, importa conhecer como estas substâncias funcionam (o efeito que produzem, a intensidade do vício, os danos psicofisiológicos) e os meios pelos quais elas se fazem disponíveis (as redes e a logística de tráfico e sua comercialização). Mas é fundamental conhecer como funciona o contato inicial do usuário com a droga. Quais características do indivíduo o levam a aceitar ou recusar, procurar ou evitar certa substância? O que o leva a desistir da substância ou persistir no consumo após a primeira experimentação? Quais contextos existenciais são mais predisponentes ao contato com a droga? Os mesmos questionamentos podem ser feitos com relação às seitas.
Talvez, toda pessoa tenha um ponto de não-retorno, a partir do qual se torna dependente e escrava da droga. Mas antes disso, importa muito conhecer estas diferenças individuais e contextuais.
Tanto no vício como no sectarismo, há um sujeito que colocou algo (a droga ou a seita) no centro principal da sua vida, que lhe proporciona um ganho imediato, a um preço no médio prazo. O ganho gira em torno da redução do sofrimento que se manifesta em sua ausência. O preço é o da submissão ao objeto do vício, levando ao desinteresse por outros envolvimentos e consequente colapso de suas relações alternativas. Tal dependência poderia não se desenvolver caso o sujeito utilizasse (ou tivesse ao alcance) outros meios de lidar com a situação provocadora do sofrimento.
À diferença da droga, que pode ser claramente ilegal e publicamente condenada, a seita é uma espécie de narcótico disfarçado de alimento, um grupo destrutivo com cara de grupo benevolente. Como as drogas, as seitas atingem sociedades como a atual, caótica, insolidária, desumanizada, comodificada, mercantilizada, estressante, insegura, com laços familiares e comunitários enfraquecidos e baixa credibilidade às ideologias ou instituições clássicas, que promoviam coesão social e esperança. Funcionam como um refúgio e alternativa aos indivíduos menos adaptados (ou mais descontentes) com a vida “normal”, refúgio que os levará a perceber diferentemente o “mundo real” e gradualmente cortar os vínculos com este. Indivíduos menos estruturados para lidar com as próprias ansiedades, dificuldades e frustrações, ou cumprir as exigências externas, acabam fazendo parte do “grupo de risco”.  
Algumas seitas podem ter efeito fulminante e mortífero, como o crack. Outras, como o cigarro, conseguem dominar o usuário durante décadas, sem aniquilá-lo. Outras podem ser como o álcool: sua nocividade é catastrófica para alguns indivíduos mas insignificante para outros (levando-nos a admitir a possibilidade que nem todo membro de seita seja dependente, como nem todo bebedor de álcool é alcoólatra). Quanto menos chamarem atenção para sua destrutividade, melhor, embora a influência destrutiva de ambas começa a ser sentida pela família, já no início, por exemplo, através do baixo rendimento escolar ou profissional do jovem, da agressividade e isolamento do núcleo social, da mudança na personalidade. Iguais às drogas ilícitas, algumas seitas só podem atuar às escondidas; outras, com aparente inofensividade, podem circular abertamente à semelhança das drogas legalizadas.
O entorno sectário, como o das drogas, proporciona sensações gratificantes e imediatas, que afastam a depressão e o temor do fracasso. A sensação gratificante da seita é ter prescrições e caminhos dados e inequívocos, dentro dos quais o participante encontrará aceitação social e salvação espiritual. A satisfação se trata de uma utopia não alcançada e provocadora de mais ansiedade. Como o pote de ouro no fim do arco-íris, a seita envolve o membro numa busca ilusória e infinita.
A riqueza de estímulos e gratificações saudáveis diversificadas fortalece o indivíduo para que não precise procurar nas drogas (e nas seitas) a compensação que precisa para manter seu bem-estar. Se experimentar, dificilmente não irá gostar ou dar continuidade. Pois é com a falta destes estímulos gratificantes que qualquer nova experiência (proporcionada por uma atividade sectária ou um “barato” psicológico) tem efeito extraordinário e impactante.

Para saber mais, leia meu livro Seitas e Grupos Manipuladores: Aprenda a Identificá-los. 

2 comentários:

  1. Flavio, por uma porção de dopamina muitos se tornam dependentes da droga servida pelo outro. Seja ela uma interpretação, um uma bela palestra feita por quem domina uma boa oratória. São mestres em formar mentes submissas. Tomemos como exemplo os discursos de Hitler que inflavam as mentes daqueles que o seguiam.

    Pena as pessoas não levarem a sério esse real problema.

    Sobre a dopamina, eu retirei do livro do Michael Schermer.

    Abraço.

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    1. Pois é... quem dera nosso único vício fosse nas drogas. Obrigado pela referência! Abraço :-)

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